Mulher, casada e que não gosta de criança. Confesso, bem sem graça, que já tive opinião preconceituosa em relação a esse perfil feminino. Lembro especialmente de uma cena que presenciei no século passado, quando meus filhos eram pequenos e fui, sem eles, jantar na casa de um casal conhecido.
Enquanto o papo rolava solto no momento drinques, um buldogue pesadão se arrastava pela sala, roçando vez ou outra a perna das visitas – e poderia ter sido um elegante whippet ou um peludo fofinho que não faria diferença.
Quando o tema filhos surgiu na roda (o que invariavelmente acontece), a anfitriã declarou, em alto e bom som, preferir de longe cachorros a crianças. Fiquei em choque – eu era tolinha!
Hoje somos amigas, ela não teve filho (por sorte do possível rebento), adquiriu um filhote recentemente e, passados três meses, doou o bicho, porque também já não aguenta a função.
Neste século marcado pela pluralidade, pelo debate sobre tolerância, cooperação e respeito à diversidade, mulher que escolhe não ter filhos ainda sofre, por incrível que pareça, preconceito e uma pressão social muito forte.
Nos Estados Unidos, existe até grupo de apoio para as chamadas NoMos (abreviação de Not Mothers ou não mães, em inglês), mulheres que não investiram na maternidade seja porque não quiseram, não encontraram um parceiro ideal, por infertilidade ou outra razão. Entre as celebs da geração NoMos, a atriz Cameron Dias é a porta-voz do direito de optar em não ter filhos e ser feliz.
É sobre essa experiência o tema do guest post de hoje, assinado pela blogueira feminista e professora do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará Lola Aronovich. Ela relata aqui com humor as cobranças que sofreu, junto com o marido, por causa da sua “ambição de transar que nem coelhinhos, mas sem esses efeitos colaterais chamados filhos”.
A opção por não ter filhos
Por Lola Aronovich
Eu tinha 23 anos quando conheci o – vamos ser piegas – amor da minha vida. Ele, 32. Nenhum dos dois havia namorado sério antes. Tínhamos apenas uma certeza: se ficássemos juntos, não teríamos filhos.
Por que essa certeza? Até hoje não sei. Claro, havia um pouco de “não gosto de crianças”, argumento usado mais como defesa que como justificativa verdadeira (e hoje já assumi: adoro crianças, mais ainda quando não tenho que ficar com elas o tempo todo). Talvez houvesse um espírito rebelde, que também contaminara meus irmãos (aos 40 anos, nem eu, nem meus dois irmãos tinham filhos, para desespero da minha mãe, que queria muito ser avó). Ou quem sabe não era tão profundo. Era apenas a suspeita de que a vida estava boa daquele jeito. Por que complicá-la?
Portanto, pouco depois de nos conhecermos, procuramos um médico. Expusemos a situação: estávamos apaixonados, tínhamos a ambição de transar que nem coelhinhos, mas sem esses efeitos colaterais chamados filhos. O maridão, então namoradão, poderia fazer uma vasectomia? O médico foi categórico: jamais. Se ao menos ele tivesse filhos, podíamos pensar no assunto. Mas ele era jovem demais para se submeter a um procedimento irreversível. Nenhum médico aceitaria fazer a cirurgia, garantiu. E ainda emendou: “Não é porque você não toca piano que vai querer cortar os dedos”.
Saímos do consultório arrastando os pés: nenhum de nós sonhava em ser Chopin.
Mas o médico estava convicto de que cedo ou tarde nos renderíamos à normalidade e faríamos o que tantos casais fazem – um filho.
Não fizemos. Não por falta de pressão. As cobranças eram frequentes, quase sempre para o meu lado. Eu era a tirana que estaria impedindo meu marido de satisfazer o sonho de todo homem, ser pai. Era impensável que ele não quisesse. E lógico que eu queria! Tinha que querer. Onde está seu instinto maternal, menina? E sem dúvida que um casal sem filhos não iria ficar junto por muito tempo! Até hoje, um monte de gente crê que sou infértil, seca, incapaz de reprodução. Não querer parece não ser uma opção.
Ah, se eles soubessem! Se soubessem que o mundo mudou. Na década de 1970, uma em cada dez mulheres nos EUA chegava à menopausa sem ter tido filhos. Hoje, esse número é de uma em cada cinco. Continuo sendo exceção, mas 20% não é tão desprezível. No Brasil, 4% dos domicílios é formado por DINCs (sigla para double income, no children, ou dupla renda, sem filhos). E se os estacionados no tempo soubessem que filhos não necessariamente trazem felicidade! Um estudo realizado com 909 donas de casa no Texas pediu para que elencassem suas atividades favoritas. “Cuidar dos filhos” ficou em 16º lugar, num total de 19 atividades. Até limpar a casa acabou na frente!
No entanto, ainda há muita gente que acha que você é um ser humano incompleto se não deixou a alguém o legado da sua miséria. Lembro-me bem de um blogueiro americano, pai de três, que há alguns anos vaticinou: quem não se reproduz é como uma vela ao vento, que se apagará ao morrer sem deixar marca alguma.
Seus leitores se indignaram: mas e os pais adotivos? E os homossexuais? E os héteros que adorariam, mas não conseguem ter filhos? E a Madre Teresa de Calcutá? Não seria muito narcisismo pensar que só espalhando sua sementinha você está sendo útil à humanidade? O blogueiro acabou pedindo desculpas.
Quanto ao maridão e eu, quase um quarto de século depois de nos conhecermos, continuamos juntos, apaixonados, sem filhos e sem o menor arrependimento de não tê-los. Em compensação, nossa ideia original de imitar a intensa vida sexual dos coelhos foi para as cucuias.
Lola Aronovich, 47, é professora do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará e autora do blog Escreva Lola Escreva