Chamar o ex de “falecido” é do além!

Por Bell Kranz

Quando um casamento acaba vem o luto, não tem jeito. É assim com toda perda. Mas ninguém morre. As pessoas podem sair feridas, mas não mortas. Apesar disso, homens e mulheres com frequência “matam” seus respectivos ex quando a história terminou mal, com um rompimento pouco amigável.

Finge-se (amigos e parentes incluídos, muitas vezes) que o cônjuge que saiu de cena nunca existiu. Foram 10, 20 ou até 30 anos de convivência em que ele recebeu em casa os amigos do casal, foi ao batizado dos filhos, trocaram presentes de Natal, viajaram juntos, dividiram perdas de pessoas queridas e um monte de almoços e jantares. Mas tudo isso é apagado.

O nome do “morto” não é nem pronunciado. Quer dizer, às vezes é, mas com outra denominação (e aí surge a versão mais grotesca da prática de “matar” o ex): ele passa a ser chamado de “o falecido”, ainda que seja o pai dos próprios filhos (ou a mãe, que vira “a falecida”).

(Julie Cockburn)
Chamar o ex (a ex) de falecido (falecida) é uma estratégia que não funciona para sempre (Imagem: Julie Cockburn)

Hipocrisia, alteridade, covardia, tirania? Sei lá, essas são posturas individuais, escolhas de cada um. O que mais importa é o impacto social, o legado desse comportamento, o que se ensina e que vai ser repetido pelos filhos no futuro. Enquanto isso, eles têm que viver o papel nada agradável de filho de morto-vivo (ou da morta-viva). É comum em encontros e festas familiares na casa de um dos pais, um convidado se aproximar sem graça e sussurrar algo do tipo: “Olha, sou muito amigo do seu pai, gosto muito dele, viu?” – mas que ninguém nos ouça é o subtexto.

Quem rompe o vínculo é o casal, mas amigos e familiares ficam desorientados. Tomar partido de um ou de outro é um direito, mas pouco se fala sobre como fazer isso com respeito e dignidade.

Veja a cena: Ana é amiga de João desde a infância e, por tabela, ficou amiga da mulher dele, Maria. O casal se separa. Meses depois, Ana está com João na rua e avista Maria. Ana faz o quê? Finge que não viu Maria. Pode ter agido assim movida por incompetência para lidar com aquela saia justa e depois se sentiu incomodada com a própria atitude. Ou não, agiu com consciência sem qualquer mal-estar. Se a reação incomodou, não desceu bem, alfinetou, vale a pena pensar sobre a concepção que se tem da separação: é fracasso, humilhação ou faz parte da vida? Refletir ajuda a transformar.

Bom lembrar também que às vezes é difícil para o amigo, que se vê diante de uma história enrolada, por exemplo, e não quer se comprometer, diz Alice Tamashiro, terapeuta do NAPC (Núcleo de Atendimento e Pesquisa da Conjugalidade e da Família), do Sedes Sapientiae. Seja como for, a melhor solução é não julgar e ser generoso com quem saiu da relação.

E por que se “mata” aquele com quem partilhou um tempo tão bom na vida? “Matar e enterrar emocionalmente alguém é enterrar aquilo que não pode ser lembrado, porque machuca”, diz a psicóloga Márcia Barone Bartilotti, coordenadora do NAPC. Trata-se de uma estratégia que anestesia, ajudando a atravessar o luto com menos sofrimento.

O problema é que dá para usar essa artimanha por um tempo, mas não para sempre, diz Márcia. Velhas questões, que se imaginava estarem debaixo da terra, ressurgem num novo relacionamento. Ou seja, uma hora o enterrado vivo reaparece – feito fantasma (ui!), ele volta para puxar o seu pé.