Da coleção de frases geniais do papa Francisco, uma funciona como bálsamo para quem sofre as dores do fim de um casamento: “Deus não tem medo das coisas novas! É por isso que está sempre a nos surpreender, a abrir nossos corações e a nos guiar por caminhos inesperados”.
A Igreja, por sua vez, não quer saber de caminhos inesperados, a menos no quesito casamento. Os milhares de divorciados católicos que recasam são proibidos de comungar. A regra afasta e causa angústia aos fieis, que se sentem católicos de segunda categoria.
“Eu fiquei mal com a Igreja por causa disso”, conta a empresária Janete Leão Ferraz Cortella, de 56 anos, que teve dois casamentos (por 6 anos e, depois, por 28 anos) e ambos os ex-maridos já haviam casado na igreja. “Os pecadores foram eles, não eu, né? Sempre fui inocente nessa história. Nunca casei na igreja. Mas eu que era punida”, reclama ela, que não recebia a eucaristia. Para o catolicismo, Janete estava envolvida numa relação irregular.
Preocupado com a forma como a Igreja trata essa e outras questões da família moderna, o papa revolucionário ou reformador, como vem sendo chamado Francisco, busca levar novos ares para a Igreja. Sem invalidar o caráter “até que a morte os separe” do casamento, volta e meia ele salpica declarações em defesa de um melhor tratamento aos divorciados e seus filhos.
“Quando o amor fracassa, e fracassa muitas vezes, devemos sentir a dor desse fracasso, acompanhar a pessoa que tenha sentido o fracasso de seu amor”, declarou Jorge Mario Bergoglio.
Sem citar o divórcio, ele chegou a considerar que a separação de uma família pode ser “moralmente necessária”: “Algumas vezes, ela pode tornar-se mesmo moralmente necessária, quando se trata de proteger o cônjuge mais frágil ou as crianças das feridas mais graves causadas pela intimidação e pela violência, a humilhação e a exploração”.
O papa já liberou a comunhão para a mulher de um divorciado. Pelo menos é o que contou para o mundo, no ano passado, a argentina Jaquelina Lisbona, 47, casada há 19 anos. Proibida pelo padre da sua cidade de receber o sacramento na missa de crisma de suas filhas, ela conta que escreveu para o pontífice pedindo orientação. Ele então teria telefonado para ela, autorizando-a a participar da comunhão, mas em outra igreja para não causar confusão com o padre que negou a hóstia. “Alguns são mais papistas que o papa. Vá a outra paróquia e se confesse, que não há nenhum problema”, teria dito Francisco, acrescentando que a condenação do divórcio e do segundo casamento pelo catolicismo está sendo tratada pelo Vaticano: “É um tema que está sendo abordado na Igreja, porque o divorciado que comunga não está fazendo nada de mau”.
“Há, sim, um profundo desejo de que a Igreja reveja alguns elementos da sua doutrina à luz do senso dos fieis e da experiência de outras tradições cristãs. Há também uma certa resistência a esta revisão”, afirma o padre Ronaldo Zacharias, doutor em teologia moral. “Saídas existem. Para qual delas Francisco vai nos orientar, devemos aguardar para ver”.
Aguardar pouco. Em outubro próximo, acontece no Vaticano a segunda etapa do Sínodo dos Bispos (espécie de Parlamento da Igreja Católica), cujas discussões sobre questões da família moderna vão servir de base para o papa Francisco elaborar orientações sobre regras da Igreja Católica – queira Deus, com mudanças!
Veja aqui: charge de Charlie Hebdo do papa com divorciadas
O DIVÓRCIO E AS RELIGIÕES
BUDISMO
O casamento no budismo é visto de maneira positiva. O namoro também. E o divórcio, de modo muito leve. Porque se a relação que chamamos de casamento, que é a proximidade, o morar junto, está trazendo mais sofrimento do que benefício para ambas as pessoas, o divórcio é a coisa mais benéfica que pode acontecer. No budismo, porém, as relações sempre continuam. É impossível você interromper uma relação, ela sempre segue.
A gente até brinca que a relação de ex, às vezes, é mais longa do que a relação entre marido e mulher. O Lama Samten sempre diz que deveríamos preparar o fim com o mesmo cuidado que preparamos o começo.
No começo, sentamos juntos, pensamos, conversamos para poder iniciar a relação de um jeito positivo, fazemos uma festa. Na hora do divórcio, é ainda mais importante, porque a relação que você está preparando é uma relação para o resto da vida.
Sempre que a pessoa casa ou descasa, existe algo nela que não casa e não descasa, e essa região mais livre é o que interessa no budismo. O mais importante é a natureza livre que é da pessoa. Se você se divorciou ou não se divorciou, isso é o de menos.
Quem está passando pelo divórcio pode ter a oportunidade de ampliar sua prática de equilíbrio, sabedoria e compaixão. Nessa situação, a pessoa quer excluir o outro, busca culpados, acha que a causa do seu sofrimento é externa. Esse engano fica muito evidente, por isso o momento é bom para as práticas. E também como preparo para ajudar o outro, olhar bem como isso se dá, porque quando seu amigo estiver passando por isso você vai realmente ter o que dizer.
Na verdade, o amor no budismo é para ser praticado com todas as pessoas. Não é um sentimento, é a motivação e o desejo de que os outros sejam felizes e uma ação para que isso aconteça. A ideia, então, é que você ame muito mais pessoas do que só seu marido e sua esposa.
Gustavo Gitti, conduz práticas do CEBB-SP (Centro de Estudos Budistas Bodisatva de São Paulo) e é aluno do Lama Padma Samten
CANDOMBLÉ
São poucas as pessoas que casam segundo o rito do candomblé; muita gente candomblecista casa na Igreja Católica ou recebe uma benção. Mas existe um rito sagrado, claro. Na tradição Iorubá, uma das vertentes do candomblé no Brasil, o casamento é indissolúvel e feito perante ifá [porta-voz de Orunmilá, conhecido como o orixá do destino].
Antes de dizer sim, é aberto o oráculo para saber se a união é apropriada ou não, ver por que aquela pessoa entrou na vida da outra, se tem a ver com seu destino, qual o sentido que elas têm juntas… Por isso, não é só um casamento de dois corpos, mas são dois casamentos espirituais, levando em conta que existe toda uma história de ancestralidade envolvida. Depois da consulta, são feitas as oferendas necessárias e a cerimônia.
Esse é um casamento para o resto da vida. Mesmo que o homem, por exemplo, morra, a mulher vai viver sozinha, não vai ter outro homem. Mas caso eles decidam viver separados, poderão praticar a religião normalmente, isso não é o problema.
Babalawo Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intelorância Religiosa
CATOLICISMO
É preciso distinguir separação de divórcio. A Igreja Católica reconhece que são inúmeros os fatores, inclusive alheios à vontade de ambas as partes, que podem levar uma relação conjugal ao fracasso. Se, depois de esgotar todos os meios para “salvar” o matrimônio, impõe-se a separação para o bem das pessoas envolvidas, a Igreja coloca-se ao lado das pessoas separadas e oferece-lhes o apoio necessário para que vivam uma vida íntegra na busca da verdade, na prática do bem e na edificação da santidade.
O divórcio, por sua vez, é uma realidade mais problemática, pois implica um novo casamento, o que violaria a indissolubilidade do casamento anterior. Segundo a doutrina da Igreja Católica, uma vez que o primeiro casamento é presumivelmente válido, mesmo tendo sido desfeito, a Igreja não tem autoridade para liberar dele as pessoas; os divorciados que se casaram de novo podem e devem participar da vida eclesial, desde que se mantenham afastados da comunhão eucarística, visto que o seu estado de vida contradiz objetivamente a união de amor entre Cristo e a Igreja, significada na Eucaristia. Exceção é feita ao casal que se abstiver das relações próprias dos cônjuges, isto é, àquele que viver em plena continência. Em síntese, todos os aspectos da vida matrimonial podem ser compartilhados na intimidade, menos a intimidade sexual.
Há quem advogue que uma noção de casamento que exige a alguém honrar todas as dimensões da união, com exceção da sexual, torna-se, no mínimo, suspeita. Isso se explica devido ao fato de o matrimônio ser compreendido mais como contrato do que como aliança. O que torna válido o contrato é o consentimento entre as partes e este é considerado irrevogável. Do ponto de vista religioso, ele é consagrado como irrevogável. Sendo assim, se não houver uma falha no consentimento inicial, capaz de invalidá-lo, o contrato confere aos parceiros direitos mútuos que não podem ser violados nem transferidos.
O Papa Francisco parte do pressuposto de que o amor fracassa e as pessoas que amam fracassam e, por isso, a Igreja deve se sentir a dor desse fracasso e acompanhar quem o sofre na própria pele, convicto de que “o Senhor está perto de quem tem o coração ferido” (Sl 34, 18). Por isso, a Igreja, segundo ele, tem obrigação de ser expressão do amor misericordioso de Deus para as pessoas que fracassaram na vivência do amor, pondo-se a serviço delas. A impressão que se tem é de que Francisco está mais interessado em considerar se um casamento é vivido como um relacionamento humano com potencial para a salvação do que em saber se ele é validamente contratado.
Padre Ronaldo Zacharias, doutor em teologia moral
IGREJA EVANGÉLICA
A bíblia diz que Deus odeia o divórcio. Deus concede o divórcio pela dureza do coração do homem, pela impiedade do homem.
Pregamos contra o divórcio, mas entendemos que existem casos em que não há saída, como o de uma mulher que é espancada por um homem e tem ameaça de morte. Essa mulher vai ficar casada com esse cara? Só se um pastor tiver um juízo perturbado para dizer que está tudo bem. Como manter o casamento se o cara já quase matou a mulher, já foi para a delegacia, já teve espancamento? Então, existem esses casos em que o casamento tem que ser interrompido para não haver uma tragédia. Mas entendemos também a banalização do casamento. Qualquer coisa, o cara quer se divorciar. Não aceitamos de maneira pacífica, no sentido do “está tudo bem, você casou e não gostou, então vai lá e se separa”. Não, não, não. Tanto que há todo um trabalho na Igreja evangélica antes de o camarada casar.
A pessoa que se divorcia não é expulsa da Igreja, não é posta para fora, nem deixa de ser membro, e o pastor vai tentar de toda forma salvar o casamento deste pessoal.
Em algumas igrejas (os evangélicos não têm uma vertente única para falar de divórcio), se a causa do divórcio não foi adultério, o camarada deixa de atuar em certas funções de departamentos da Igreja. Por exemplo, se esse camarada se divorcia, ele não vai tomar conta de casais. Como vai falar de unidade, de casamento, se ele está divorciado? Eu te garanto que a maioria das igrejas não vai deixar um camarada divorciado tomar conta de casais.
Há uma diferença entre a ovelha que está na igreja e o pastor. Este, para se divorciar, recebe muita repulsa se não houve adultério. Perde a credibilidade e, grande parte dos pastores, perde a igreja, porque como um pastor celebra um casamento e pede que o casal fique unido para sempre se ele tem um divórcio por causas banais? A não ser que ele tenha sido comprovadamente traído; aí, ele está aliviado.
Pastor Silas Malafaia, presidente do Conselho de Pastores do Brasil
ISLAMISMO
O divórcio é um direito tanto do homem como da mulher. A religião islâmica, porém, não vê como agradável que essa seja a primeira solução para um conflito de casal, mas a última, quando não há mais como conciliar, como dialogar.
Faz parte do ser humano criar tabus e estigmas. A religião islâmica vem para lapidar isso e mostrar que o divorciado é uma pessoa comum. O próprio profeta Mohamed, o último dos profetas que foi enviado para nos guiar, com 25 anos de idade quebrou todos os tabus da época. Casou com uma mulher 15 anos mais velha, viúva duas vezes, que já tinha filhos e era patroa dele, uma empresária. Quer dizer, ele quebrou todos os tabus da época para demonstrar que estes tabus não podem restringir os direitos das pessoas. Portanto, as pessoas divorciadas têm o direito de casarem novamente com quem elas quiserem e não devem sofrer qualquer preconceito ou discriminação.
Sheik Jihad Hassan Hammadeh, presidente do Conselho de Ética da União Nacional Islâmica
JUDAÍSMO
No judaísmo, existe a possibilidade do divórcio religioso. Quando fazemos um casamento, não dizemos até que a morte os separe, porque acreditamos que a morte é um dos fatores que podem separar um casal, mas existem outros. Quando deixa de haver uma compatibilidade entre um homem e uma mulher, em que não existe mais respeito, não existe mais amor, não existe mais diálogo, acreditamos que o divórcio é legitimo. É função do rabino tentar reaproximar esse homem e essa mulher que querem se separar. Mas, se ele estiver convencido de que isso não é mais possível, vai conduzir uma cerimônia chamada guet, que é uma cerimônia religiosa de divórcio.
No passado, esse divórcio tinha que acontecer por iniciativa do homem. Mas as autoridades religiosas já repensaram esse procedimento e hoje tanto homem quanto mulher podem dar inicio ao processo de divórcio judaico.
Depois, eles voltam a casar normalmente, com qualquer outro homem ou qualquer outra mulher judia e terão sua união celebrada por um rabino na sinagoga, como se fosse a primeira vez.
Rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o Diálogo Inter-religioso