Charlotte Rampling e o sentido das bodas

Por Bell Kranz
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No papel da protagonista Kate, em “45 Anos”, Charlotte Rempling levou o Urso de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim (Foto divulgação)

Sessenta anos de casamento! Sabe o que é isso? Nem o padre que celebrou a digníssima cerimônia sabia. Em uma das igrejas mais tradicionais de São Paulo, o casal de seus 80 anos, meus queridos tios, entrou devagarinho, suave, mas com vigor, rumo ao altar para a renovação dos votos.

Todos se emocionaram por causa do clima de delicadeza, ternura, serenidade que reinou na cerimônia. A “noiva” usava um longo azul claro, bordado de pedrinhas brilhantes, e o noivo, terno escuro e gravata da cor da cabeleira, prateada. No altar, estavam rodeados pelos filhos e netos, os padrinhos – e incontestáveis testemunhas.

Para contrastar, naquela noite de sexta-feira de chuva pesada na cidade, ruidosos jovens convivas do casamento seguinte se amontoavam na entrada e, quando já não era mais possível, “invadiram” a igreja. Afinal, o padre não finalizava nunca os trabalhos, estava claramente maravilhado com aquela celebração que, sabe-se lá Deus, se ele veria outra vez na vida.

Boda vem do latim vota, que significa promessa, e é isso que se vai fazer numa cerimônia de bodas (no caso, foi de diamantes), renovar a promessa feita no dia do casamento.

Daí, festança boa à parte, surge a questão: precisa prometer mais alguma coisa depois de 60 anos de vida em comum? Essa, porém, é uma mentalidade bem tacanha de quem vê o idoso como um ser vazio de expectativas e cheio de certezas, especialmente a respeito do futuro de um casamento de décadas.

O filme “45 anos”, do diretor e roteirista inglês Andrew Haigh, lançado recentemente, mostra que septuagenários podem sofrer tão profundamente de ciúmes, desconfiança e angústia existencial como qualquer jovem amante (trailer abaixo).


Dois ícones do cinema britânico, Tom Courtenay, 78, e Charlotte Rampling, 69, que levaram o Urso de Prata de melhor ator e atriz no Festival de Berlim, fazem o papel de Kate e Geoff Mercer. O casal se prepara para comemorar bodas de safira, 45 anos de casamento. Na semana da festa, ele recebe uma carta com a notícia de que o corpo de seu primeiro amor, Katya, desaparecida nos Alpes suíços há mais de 50 anos, foi encontrado (ele estava com ela quando o acidente aconteceu). A notícia estremece o maduro e sólido vínculo conjugal.

Geoff fica desorientado com a descoberta do corpo da ex-namorada, que está conservado, literalmente congelado pelo tempo, tal qual era quando ambos namoravam. Vêm à tona informações da relação que Kate não sabia. O comportamento do marido muda, e ela então parte para a espionagem.

Não vai fuçar o WhatsApp dele nem invadir sua caixa postal, mas o sótão da casa, para onde ele vai quando sai da cama de madrugada. Lá ela descobre seus segredos: um diário e slides com fotos de Katya.

O fantasma da ex assombra o casamento. A mulher se sente traída por ele no compromisso de dizer sempre a verdade. Nem tudo do caso de Geoff com a antiga namorada havia sido contado. Mas ele não mentiu, omitiu. E aí? Isso é traição? Quando diz amargurada que sempre foi uma boa mulher para ele, sinaliza um equívoco comum nas parcerias, acreditar ser responsável pela felicidade do outro, quando ser pela sua própria já é uma vitória.

Kate tem o lado mulher-mãe bem desenvolvido, que cuida (não se limita a lembrá-lo de tomar seus remédios, mas os entrega com o copo d’água) e que dá lá algumas ordens.

A cena final, um show de interpretação da bela Rampling, uma das poucas estrelas que aceitou as marcas do tempo no rosto, cabe diferentes interpretações. Vale a pena conferir.

Li só elogios ao filme e ouvi críticas de público sobre uma possível “superficialidade” do roteiro. Isso talvez porque o filme está a anos luz de distância da imagem caricatural que se faz das pessoas mais velhas, é megarealista, muito humano.

Os casamentos, como as pessoas, podem envelhecer lindamente ou não. Renovar, portanto, faz todo o sentido.

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