Vendemos mal o nosso peixe

Por Bell Kranz

Às sete da manhã de hoje, o celular começou a apitar do lado da cama com a chegada de flores pelo 8 de março. O buquê foi enviado por uma conhecida querida, mulher batalhadora, mãe, divorciada e que, no momento, enfrenta a batalha contra um câncer. Mais rosas foram chegando ao longo do dia, enviadas por homens também.

Flores são sempre bem-vindas, ainda que virtuais pelo WhattsApp! Agradeço. Mas o dia está mais para lembrar a luta diária por direitos iguais, fim das discriminações e ação de todos nós!

No quesito casamento e descasamento, um montão de questões do cotidiano refletem atitudes e mentalidades machistas. A dupla ou tripla jornada de trabalho (a remunerada na rua e a não remunerada em casa) é uma das temáticas femininas que, em matéria de Ibope, só perdem para a TPM quando se tem 20 anos.

Aliás, a questão é global. No mundo todo, é a mulher quem faz a maior parte do trabalho não remunerado (cozinhar, cuidar da casa e filhos): são 4,5 horas, em média, dedicadas todos os dias a esse serviço. É mais que o dobro da carga de trabalho doméstico dos homens, que passam mais tempo trabalhando fora de casa e se divertindo. Tudo isso segundo dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

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O caderno “The New York Times International Weekly” publicado na Folha no último sábado, dia 5/5, traz uma tabela com o número de horas que homens e mulheres de 29 países dedicam todos os dias às tarefas domésticas. A reportagem enfoca o aspecto econômico do tema: desigualdade de gênero trava o avanço econômico!

Como reduzir essa disparidade e melhorar o cotidiano massacrante especialmente de mulheres de classes mais baixas? Há quem fale em medidas governamentais, como licenças remuneradas para pais e mães de recém-nascidos. Mas a raiz da questão é sociocultural, mesmo, e passa pela educação de pais, mães e filhos.

A convite do “Casar, descasar, recasar”, a psiquiatra e analista junguiana Iraci Galiás, da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, escreveu uma reflexão bastante inspiradora em prol do resgate do feminino na nossa cultura.

O RESGATE DO FEMININO NA CULTURA

 

Por Iraci Galiás

Há muito tempo nossa cultura vem funcionando com divisão de papéis bem delimitada entre o homem e a mulher. Dizem os estudiosos que nem sempre foi assim, mas é assim que ficou. A cultura modifica seus valores, é uma espécie de organismo vivo que se transforma, tornando algumas coisas melhores e outras piores.

Nessa divisão de papéis, ao homem coube ser o provedor, o que resolve certos assuntos da família, o que se profissionaliza, exerce um trabalho que tem valor, tanto que ganha dinheiro. À mulher coube cuidar da casa, filhos, marido, enfim, da família. Lá pelas tantas, ela saiu à rua, se profissionalizou, foi para as universidades, se afirmou e até começou a ganhar dinheiro.

Só que passou a se sentir sobrecarregada. Além do que já cuidava, conquistou o direito de ter novas responsabilidades, dividindo com o homem as áreas que a ele cabiam.

Ouço de amigas, colegas e clientes, perguntas com as quais tenho empatia por fazê-las às vezes eu mesma: “Será que somos bobas, será que fizemos um bom negócio?”. Olhando por esse ângulo, muito espertas não fomos. Mas não acredito que possamos nos pensar “vítimas” de mais uma “esperteza” masculina, que tudo tenha sido trama do homem para diminuir sua tarefa. Afinal, todos nós, homens e mulheres, temos nossa dose de esperteza e nossa dose de tontice.

O universo do homem, de que ele se ocupa, é muito valorizado. É o mundo do sucesso, das conquistas, do sacrificado, mas grandioso. E o que ouvimos sobre o mundo da mulher? Queixas e muitas. “Que vida mais chata. Cuidar da casa é uma tarefa insana. Sempre fazendo as mesmas coisas. E ele ainda reclama do meu desânimo para fazer um lindo jantar para os homens de seu mundo importante dos negócios. E também tenho que ficar magra. Afinal, “ele é quem quer, ele é o homem, eu sou apenas uma mulher…” (até você, Caetano!).

Refletindo sobre essas questões, ocorreram-me algumas imagens. Imagine uma feira livre com duas bancas de pescado. Uma é dos homens e a sua propaganda é assim: “Comprem, comprem, comprem. Temos salmão de primeira, bacalhau fresco, lagosta, camarão, trutas e preciosos filés de linguado!”. E, claro, produtos tão bons custam caro, mas vale a pena. E o produto é tão bom e a propaganda tão bem-feita, que a mulher logo se esforçou ao máximo e comprou esse peixe. E continua comprando – o salmão-universidade, o bacalhau-trabalho fora de casa, a lagosta-cargo importante, o camarão-ganhar dinheiro, a truta-fazer palestras, o filé de linguado-escrever artigos etc.

Na frente dessa banca, há outra banca de peixe, a da mulher, e aos homens que passam por ali é feita a seguinte propaganda: “Comprem aqui, seus injustos e arrogantes. A sardinha está quase apodrecendo, as pequenas postas de cação já estão moles e grudentas, os mariscos, quase malcheirosos, e vocês ainda não compram? Vendo não tão barato porque, do contrário, tenho prejuízo, mas comprem, porque esta é uma obrigação de vocês!”. Logicamente, o homem não compra. Com essa propaganda, ainda que fosse só tonto, não o faria.

Se contratássemos uma consultoria para essa empresária-banca-de-peixe-mulher, seguramente alguns apontamentos e conselhos óbvios seriam dados. O primeiro: questioná-la por que ela desvaloriza tanto o seu produto. E se desvaloriza, como quer vender? E se quer mesmo vender, por que faz tão má propaganda do nosso produto ­– nosso porque nos coube mediante a divisão de papéis, nosso porque temos muita intimidade com ele.

Jung concebe o ser nascendo com arquétipos. Chama de arquétipo da Grande Mãe o que cuida da nutrição e fertilidade; a lua é um de seus símbolos. Chama de arquétipo do Pai o que cuida da separação entre os opostos de uma forma elitizada, separando o certo-errado, bom-mau etc., trazendo a clareza, coerência e pingos nos is. É simbolizado pelo sol.

Homens e mulheres possuem todos os arquétipos. Mas, na divisão cultural de papéis, a mulher ficou mais identificada com o arquétipo da mãe (dona-do-mundo-da-lua) e o homem, com o arquétipo do pai (dono-do-mundo-do-sol).

No nosso passeio reflexivo, vemos que a mulher ganhou o lugar ao sol, mas o homem ainda não ganhou o lugar à lua.

Voltando às imagens: imagine duas grandes batalhas sendo travadas por eles e por elas. A primeira é a da conquista do patriarcal. Para o homem, essa é uma luta alinhada com o que a sociedade espera. Se ganha o seu dinheiro, se impõe, se profissionaliza e faz sucesso, a “torcida” é favorável. Se não atinge esses objetivos, a cultura o marginaliza, não aceita, e isso atua como uma força que o impulsiona.

Para a mulher, essa batalha é mais complicada. Às vezes, ela encontra oposição social a que se desenvolva por meio do estudo e do trabalho. Tem que contar com força e definições pessoais muito maiores que o homem, já que não será impulsionada pela sociedade.

A segunda batalha é pelo resgate matriarcal. Para a mulher, esta batalha naturalmente só poderá ocorrer (quando ocorre), se ela tiver travado a primeira, ou seja, seu lugar ao sol. Nesse caso, chega um momento onde o mundo da Grande Mãe pede novamente espaço.

Essa batalha pode ser nem tão renhida, pois, em geral, ela nunca deixou inteiramente de exercer tais encargos. Além disso, tem uma familiaridade secular com esse universo, onde penetra sem ter que mostrar “documentos”. Está no que a nossa cultura identifica como “em seu lugar”, o qual por séculos foi o único que lhe coube. Então, de um lugar que era seu, a mulher sai e retorna a ele por opção.

Acontece que também o homem, na realização dos seus potenciais enquanto ser humano, necessita desse resgate. Mas desta vez ele não tem a mesma sorte! Tudo o que lhe foi culturalmente favorecido na primeira batalha (pelo patriarcal), agora não existe. O embate é árduo e de difícil aceitação social. Pela nossa cultura, o ingresso livre aos recintos onde a Grande Mãe reina só é permitido ao homem como filho.

Por que um homem tem que ser maternal, valorizar certos aspectos de cuidados pessoais e com os filhos ou exercer as tarefas domésticas? Será que ele é homem, mesmo, ou está com algum conflito na sua identidade sexual? Estas são as perguntas que nossa sociedade faz explícita ou implicitamente. A batalha então é solitária ou acompanhada por poucos.

Quando o homem não compra o produto da mulher, tão malpropagandeado, e não conquista seu lugar à Lua, perdem ambos – ele e ela. Sofrem ambos. Sofre a família. Perdemos todos.

Opostos simétricos

Uma das coisas buscadas no processo de individuação (como Jung chama a realização pelo ser humano dos seus potenciais) é a relação simétrica e dialética entre o homem e a mulher. Para haver essa simetria, é fundamental que ambos se deem conta de que são opostos simétricos. E que seus antigos mundos divididos (na nossa imagem, as duas bancas da feira) sejam simetricamente compartilhados. Enquanto funcionar o “ele é quem manda, ele é um homem, eu sou apenas uma mulher”, continuará funcionando o “todo dia eu só penso em poder parar / Meio dia eu só penso em dizer não / Depois penso na vida pra levar / E me calo com a boca de feijão”, como tão bem dizem os poetas!

A meu ver, o papel da mulher no resgate do feminino na nossa cultura é exatamente perceber o valor da Grande Mãe, de que preciosidade ela tem sido a guardiã e, com isso, ter elementos reais para fazer uma adequada propaganda do matriarcal entre os homens.

Acredito que difundir a validade de se viverem os segundos papéis é necessário. E para que nossa cultura não somente permita como “convide” o homem a vivê-lo quanto ao arquétipo da Grande mãe, nós mulheres temos uma boa tarefa!

Boa sorte a nós todos!